domingo, 2 de julho de 2023

A Palmeira


Há uns anos fui passear ao jardim Botânico tropical de Belém.
Olho para esse Verão e o meu olhar enche-se de uma luz amarela quente, mistificada pela nostalgia de qualquer coisa muito anterior ao Verão, já que, esse, foi passado à espera do que nunca chegou.
Deitada, dia após dia, sobre a areia, observando a pele tingir-se lentamente de uma cor que nunca foi realmente minha.
No canto da praia, abraçada pelo anfiteatro das rochas olhando o mar,
chorei ao sol de uma forma que nunca julguei possível entre as pessoas.
Vivi nesse jardim de plástico velho e beatas secas enterradas na areia, esperando.
Dormitando, chorando, bebendo cafés.
Mas no meio do jardim uma palmeira radiosa, cujas ramagens pesadamente floridas flutuavam na corrente invisível do ar marítimo de Belém.
Como quis ser essa palmeira tão intensamente harmoniosa, resplandecente.
Hoje, sinto-me mais próxima  daquele jardim, rodeada de espécies ligeiramente exóticas e silenciosas, retirada da agitação bacoca do asfalto e das novelas tontas dos humanos.

sábado, 1 de julho de 2023

terça-feira, 2 de maio de 2023

 A Persistência da Memória.


Regressamos a Algés para dar início à concretização dos nossos planos. Tudo tarda. O luto desta casa é uma coisa que se interrompe e recomeça a cada visita.

Agora arrumo a casa que não se vê. Objectos inúteis acumulados dentro das gavetas, caixas, pastas, armários.

Já não me recordava da presença deste rio na minha janela, companheiro de tantos anos. Não me recordava de ser tanto desta cidade. 

Novo luto. 

Luto, sobre luto, sobre luto. Palavra parente de Luta.

Organizo as minhas coisas. Deito muitas memórias fora. Todo o objecto, por mais singelo ou estragado que seja, transporta  uma pequena memória. Vou, portanto, eutanizando pequenos pedaços de mim que já não vivem. São apenas espectros momentaneamente espasmódicos, porém mortos.

Acho que cheguei áquela idade em que começo a sentir que vivi muitas vidas, mas sem grande vínculo nostálgico ou romântico. De alguma forma, essas vidas que vivi instalam-se como pequenas dores na memória.

O meu cérebro tenta, sem sucesso, esquecer-se de tudo. 

Ultimamente tem-me visitado um título (mais do que a obra propriamente dita) de Dali. A persistência da Memória. Persistência que tento contrariar e que começou, em mim, na sua antítese.

Quando era mais jovem guardava relíquias de todos os acontecimentos da minha vida, guardanapos de papel de um jantar de grupo, ramos secos e tampas de plástico, laços de presentes e caixas de fósforos usadas, sabonetes de hotel. Ossos e penas e espinhas ou pequenas cascas de crustáceos.

Uma trança mumificada do cabelo que cortei em Barcelona.

Lágrimas vertidas em Barcelona...

Atrás de uma coisa vem sempre uma tristeza qualquer. Atrás duma mulher vem sempre outra e mais outra.

Tantas vezes já olhei através desta janela sozinha. 

No Pizão não há uma janela por onde olhar. É um espaço opressivo, fechado sobre si mesmo  como uma família. Serei algum dia capaz de fugir a essa tendência armadilhante da família, do espaço familiar.

Vim aqui para isso.

Mas que inquietação esta a de encerrar uma vida para trás e fazer nascer outra.

Deixarei alguma vez de interrogar o passado como se de uma jóia se tratasse. O passado sou apenas eu lá atrás, sem as mesmas respostas que não tenho hoje.

Que saudades deste rio e deste vento uivante entre os prédios.

que saudades dessa amargura ingénua que ainda não sabe que a vida vai, de facto, acabar.

Tenho pena de morrer, de não viver para sempre, de não ter tempo para me tornar no que realmente sou.

Não há tempo suficiente para perder todo o medo e ganhar a confiança necessária, disse um dia Clarice.

Já não aguento o amor que sinto por esta casa, por esta vida que vivi sómente de mim para mim.

Desta solidão no escuro com o rio ao fundo apenas restará uma vaga sensação de desaparecimento.



domingo, 23 de abril de 2023

to do

Ando há mais de 3 dias a pensar, tenho que comprar papel higiénico. Hoje acabou mesmo. Recorri aos lenços de papel...mentolados, descobri eu tarde de mais. De amanhã não passa.

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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Dou uma última olhadela às pessoas no corredor lá fora, livres e vestidas. Sinto-me uma condenada. Dispo-me, não posso levar nada de meu lá para dentro, além das cuecas e das meias. Entregam-me uma bata que mais parece a gozar. O frio entra por todo o lado, numa falta de pano mentirosamente púdica.  Amarram-me a uma espécie de maca glacial com uma bola de borracha na mão. Põem-me uma máscara na boca. Deito-me na desconforável posição imposta. 

Avisam-me de que isto vai durar. Já sei como é. Já cá estive. A sensação de estar apartada de tudo é fortíssima. Uma espécie de aeroporto só para mim, uma cápsula-terra-de-ninguém individual. Tenho a sensação de que me vão deixar aqui e nunca mais voltam. Dizem-me que não. Mas, daqui, já não consigo ver ninguém. O som começa a penetrar-me na cabeça, marteladinhas que parecem desafiar  qualquer hipótese de ritmo. Depois, sobrevêm  agudos muito agudos. Alguns agudos doem dentro da cabeça, têm um efeito físico imediato. Os sons sucedem-se. Parece que o Pierre Schaeffer saltou diretamente de Paris, no final dos anos 40, para tomar de assalto todo o meu corpo. O som é incrível, invasivo, sem rumo e desnorteador. Às vezes, parece que me vai esfrangalhar os tímpanos. É anárquico e nunca mais acaba. Procuro padrões. Quando acho que encontrei algo, desaparece logo a seguir. Quando acho que acabou, estremeço porque recomeça.

Estou sob investigação e procuro sentir-me melhor, investigando eu também. O som é tão alto que adormeço, uma espécie de defesa animal, imagino. Não percebo se passaram dez minutos ou duas horas. Há poucas experiências no mundo urbano em que se esteja tão à mercê. Não se pode reagir a nada, nem ao frio, nem à dor, nem à comichão, nem à falta de ar. Se nos mexemos, é pior. Qualquer movimento a mais pode deitar tudo a perder. Fui avisada e estão a controlar tudo o que faço. Se me portar bem, libertam-me. Mas, se estiver inquieta ou me agitar demasiado, vou ficar mais tempo de castigo aqui metida. Houve alturas em que andava tão stressada que não conseguia aguentar isto. Dava-me pânico. Uma vez, quase fugi.  Não voltei lá durante anos. Aguentar estar aqui presa passou a ser uma espécie de bitola pessoal, para medir se ando benzinho ou passada de todo. Agora ando benzinho. Hoje até sinto que há qualquer coisa que me agrada neste anular da vontade. Não poder mexer-me, nem ir a lado nenhum, nem falar, de preferência nem sequer tossir.

Tal como me agradam tanto os aeroportos, aquela suspensão do tempo e do espaço no hiato da sala de embarque. Dantes viajava mais. Faz-me falta. Tudo o que ficava em terra e todos os que ficavam em terra já não podiam chegar a mim. Uma maravilhosa separação imposta, uma deliciosa mistura de excitação, saudades e uma plenísisma e concreta sensação de mim mesma que, em terra, se manifestava difusa e intermitente. Nunca me sentia tão eu como quando me ia embora.

Aqui também ninguém pode chegar a mim. Preciso de silêncio e paz. Aqui, de silêncio nada. Mas advém alguma paz de saber que, ao menos neste momento, não há outra coisa que eu pudesse ou devesse estar a fazer. Essa perspectiva pacifica-me. O meu habitual pensamento é um bicho insatisfeito que se extenua a andar à roda, numa constante divagação por cenários de vida hipotéticos paradoxais  e inconciliáveis. Nestes, a única constante é que ele (o meu pensamento) conclui sempre que eu deveria estar a fazer algo que não estou a fazer e a ser alguém que não sou. Por isso, a minha mente compraz-se agora com esta aterragem temporária, forçada e imobilizadora, aqui na cápsula. E entrego-me de bom grado, com alguma bonomia até, ao estranho massacre sonoro da jam deste carpinteiro bipolar, que meteram na minha cabeça, e a quem deram carta branca para improvisar. E vem-me à memória um livro infantil com ilustrações feitas de retalhos de tecidos. Na primeira página estava um carpinteiro com uma pança esférica metida numas jardineiras azuis de grandes botões e um bolso com um coto de lápis à espreita. Tinha um bigode roliço montado num sorriso patético e brandia um serrote no ar. Os seus sapatos castanhos pareciam os meus da Bambi e estavam cobertos de aparas de madeira clarinha muito enroladinhas umas nas outras, iguaizinhas aos caracóis que eu afastava para o lado para ver bem as páginas do livro. 

Chamam-me. É para sair. Portei-me bem. Quase tenho pena porque agora tenho de voltar à minha vida.

Incrível onde nos pode levar uma ressonância magnética.

Notas: A autora tenta escrever como escrevia antes do acordo ortográfico mas talvez o seu português já esteja algo abastardado, como todo o país, da capital a Semide, onde já há burros da glovo a entregar chanfanas para aquecer no micro ondas.

A autora não revê (muito) o texto. Perdoem-lhe as gralhas e assim.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

 

Família.

 




terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Com alguns anos andados nesta vida, ainda consigo espantar-me com a rapidez com que abrimos as portas e janelas em salas cujas chaves se davam por perdidas e se tinham arquivado na pasta de memórias do passado.

E com a rapidez com que essas salas se iluminam e abrem os braços-portadas para nos acolher.

Ainda só chegaram a Valentina e a Susette.  As outras não sei quando chegarão. Combinámos encontrar-nos por aqui mas o dia e a hora são incertos e assim se quer: vogar sem obrigação. 

A sala ainda está cheia daquela poalha densa que é coada pelos raios de luz e cospe camadas de transparências diversas que obrigam a retina a abrir e fechar, num esforço de focagem e crença a um tempo.

Enquanto as outras não chegam, vou aqui preparar uma cevada e um medronho, que uma mão lava a outra, como se costuma dizer. E vou comer um resto de pão frito duro que ali tenho, ensopado com o resto do molho da caldeirada de ontem.

Acabei de voltar de Buarcos, junto à Figueira da Foz, onde passei 7 anos (ou foram 12?), incluindo os dois da pantomina.

Era manager de um espectáculo de variedades. Ficava mesmo ali a seguir à última saída do eixo Litoral-Interior, logo a seguir às farturas com neon amarelo. O show era numa tenda arrimada àquela barraca onde os noivos e os bêbados vêm disparar para dentro de ursos de peluche verdes e roxos que levam  depois trespassados para casa, com as veias de falso veludo vermelho a escorrer para fora do buraco que cosem na saleta, debruado em forma de coração com uma linha preta de seda. Mas o mal já está feito.

Fui, também (e isto é bem mais do que um detalhe), casada com um homem que era canalizador, construtor, progenitor,  quase meu pai e muito meu filho, pedreiro, desenhador, manuseador de máquinas de filmar e enxadas oxidadas e artista do nonsense. Tinha jeito para mudar o óleo do carro, e afã de carregar selhas da vindima da azeitona. Isto além de respigador de crâneos de raposa (diz que, afinal, era um cão), que nunca se sabe o que é que pode vir a dar-nos jeito, até ao lavar dos cestos é vindima e ficcionista de vidas gigantes que iam sair daquela mas nunca desaguaram, como a Ribeira de São Pedro de Moel, imortalizada pelo Zé Mário

Vivemos juntos anos e anos, sempre quase-quase a parir a solução daquilo tudo, numa puta de uma gravidez interminável. Noites e noites quase a parir a solução para o terreno, para a casa, para a vida, para o puto e, parecia mesmo, para o todo o futuro. 

Mas, bem vistas as coisas, estávamos à procura de soluções para todo o passado. É que esse cabrão, vejo-o agora quando me lembro da neblina que cobria sempre a praia, era quem dava as cartas do nosso presente e desenhava o futuro. Agora já o sei que construir o futuro a partir do passado nunca pode dar em nada sem ser tender esse mesmo passado para dentro do futuro, cobrindo-o com uma película fina estanque e expectável. Mas na altura não sabia a ponta de um corno de nada disto e assim andava ainda mais cega que hoje.

Tanta e tanta vez que lá foram os amigos e amigas (algumas delas destas que estão pra chegar) a caminho de Buarcos aos pares, em pequenos e grandes grupos, para a receber a anunciação do nosso futuro. Iam lá e ajudavam a dar um jeito à casa antes de eu ir para a maternidade parir a solução. Não posso jurar se dei à luz nem o quê. Estava sempre tanto nevoeiro que me fui ausentando de mim e lá pró fim acho que já nem lá estava. Se pari, não me lembro.

Para ver se nasceu algo disto tudo, nascer assim mesmo nascido e amiudar o seu aspecto e tamanho, precisava de mais visibilidade.  É que o nevoeiro que lá havia tapava a vista à gente, assim como a poalha que me cai nos cabelos nesta sala nova-velha. Quando fecho os olhos para ver cá dentro, vejo a praia sempre coberta pelo tal nevoeiro (parece que no paredão e na falésia, felizmente, já começa a descobrir).

Nascer, o que se chama nascer, não sei bem o que nasceu. Mas morrer, isso sim, morreu uma catrefada de gente. Da falta da morte não nos podemos queixar.

A vantagem dos mortos é que deixam tantas merdas para trás, que nos entretemos com elas. Ficamo-nos longos dias, que se aglutinam em anos, a debater se empandeiramos aquelas merdas todas ou se nos empalhamos antes nós para dentro delas. Com tanta coisa para destinar acaba por ser suportável lidar com aquela morte toda. Ficamos muito ocupadinhos com a cómoda, a TV com uma chave (sim, uma chave!!!), os vestidos feitos na modista Cinda, os fatos e fatos e vestidos pretos que enchouriçaram a avó numa longa viuvez irrepreensível, a coleção de anéis dos charutos do pai, a saber: centenas, senão milhares, de aneizinhos de papel dourado a dizer "Romeu e Julieta, Havana", "Montecristo, Havana", "Partagas", "H.Upmann", "El Rey del Mundo, Havana", guardados em centenas, senão milhares, de lindas caixas de charutos de madeira, a coleção de limpadores de charutos, pauzinhos brilhantes de uma espécie de veludo de todas as cores, mal empregados para limpar as orelhas, camisas de noite e meias a dizer "306". Ainda hoje uso meias com o número do quarto do lar da minha avó, ali na Rua São Filipe de Néri, umas freiras franciscanas, que de franciscanas só tinham o rimmel. Até o meu filho, que da bisavó mais não se lembra do que umas histórias que lhe contam com variações de acordo com o clima e pulsação de cada membro da família, vai para o polivalente da escola com o "306" pintado nas meias que-ainda-dão, apesar dos elásticos meio esgarçados.  As putas das canetas eram caras mas a tinta não sai, lá isso não.  Tal como não sai o nome "avó teresa" escrito por ela nos tupperwares. Assim mesmo, "teresa" com minúscula, com uma letrinha tão bonita, ensinada pela mestra prematuramente abandonada por ser mulher. Aquele "t" minúsculo ainda me dá vontade de chorar. Vá-se lá perceber que panos se torcem cá dentro que, bem apertadinhos, ainda trazem água e sal ao fim de tanto tempo. Se não pingam quando os torço numa direção, é rodar para o outro lado e já está. Felizmente, vou-me dedicando cada vez menos a torcer atoalhados fora de moda.

Assim, ocupadinhos com esta tralha toda, quando damos por nós, os mortos já morreram há muito ano e já se consegue viver sem eles. Não tão inocentemente como isso, pousa-nos nas mãos aquele bocado de culpa que nos dá aquela coisa de termos aprendido a viver sem eles. Parece que nunca se chorou tudo o que se lhes devia. Fica no coração um cheiro húmido, amor e cânfora, e uma rampa que nos precipita para uma solidão inexorável mas cada vez menos frequentemente, com o passar dos anos. Mas, às vezes, a falta deles ainda nos apanha pela calada, quase à canzana, com uma vivacidade que já se lhe não esperava, atribuindo-nos de volta a idade da infância, tenra e fatal. E também sobra a puta da caixa de bombons Quality Street com peças sortidas de emoção e história, clips de um feitio que já não se fabrica com um botão e um dente cariado de alguma criança antiga do tempo em que os sapatos não se moldavam aos pés. Há sempre umas merdas que não há, nem nunca há de haver, adonde pôr.

Já me alonguei muito, acabei com o medronho e com o pão frito e não toquei na cevada, que está fria e coberta de nevoeiro, também ali não há futuro que se leia. 

Ouço vozes que cantam alto.

Imagino são as palavras novas que vão escrever um futuro que não venha do passado. 

Um futuro liso e brilhante, de veludo dourado e verde, a espraiar-se em tons de azul cobalto e azul laranja, com todo o tipo de seres, plantas e flores, sexo, vida e prazer. Por estrear.



terça-feira, 13 de dezembro de 2022

 

Caminho.






domingo, 11 de dezembro de 2022

  No meu outro país podemos mudar de nome 1 vez a cada 10 anos.

Na realidade  o meu nome é Valentina, Valentina Bjørnsen .
O meu nome não tem nada de especial, somente quer dizer que algures nos meus antepassados existiu um Bjørn que teve um primogénito a quem deu o nome de Bjørnsen que quer dizer nada mais que filho de Bjørn.
A partir daí a todos os seus descendentes foi atribuído este apelido até à minha geração e por aqui há-de ficar pois não quero ser mãe e o meu pai não teve irmãos.
A título de curiosidade se tivesse sido uma primogénita seríamos todos Bjørndatter.
Quem escolheu o meu nome foi o meu avô, deles, dos meus avós paternos só herdei metade dos meus genes noruegueses e uma camisola cinzenta de lã tricotada pela minha avó com um botão de osso de baleia esculpido pelo meu avó.
Esta camisola pertencia ao meu avô e era a sua favorita para ir à pesca. Dava-lhe sorte e via sempre uma baleia. Na minha juventude ofereci esta camisola a um beto surfista da Praia Grande com quem eu achei que ia ficar comigo para toda a vida.
O meu avô queria me chamar Hjørdis, Hjørdis significa Deusa da Espada ou Deusa Guerreira.
O meu pai não quis pois iríamos viver em Portugal e já bastava aquele apelido que ninguém saberia pronunciar quanto mais ser Hjørdis Bjørnsen. Ficaram 6 meses sem se falar, o meu avô praticamente não viu a minha mãe grávida  mas no dia em que nasci ele chorou muito e chamou-me Valentina, Valentina significa valente, eu fui a sua primeira , e única, neta e assim fiquei Valentina porque na família do meu pai raramente nascem mulheres.
O meu avô sempre me chamou Val que em norueguês  (Hval) quer dizer baleia. O velho era teimoso.
Quanto à camisola arrependo-me de morte, pois apanhei o beto surfista a curtir com a minha “melhor amiga” e eu adorava aquela camisola.
Contei ao meu avô e ele esclareceu-me com a sua sabedoria nórdica que eu era mais bonita e inteligente  que o rapazola, e que não se dá o nosso coração a ninguém mesmo que se ame essa pessoa,
Fez-me pequenas esculturas até à sua morte.
Sinto falta da camisola, cheirava ao meu avô.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Isto Dá-me Sorte

Hoje está frio o que deixa pouco espaço ao optimismo.
Por isso penso no que me deixa feliz, e vem-me à memória uma frase de uma amiga minha que inverto, e sorrio a pensar no que me dá sorte, e o que me dá sorte é ter este abrigo onde me aquecer.
Ainda bem que é Inverno e faz frio e apetece estar em casa, em muitas casas onde se é muito bem recebido, e o calor que nestas casas se sente derrete todo o frio que lá fora faz, e sou feliz muito feliz.
E penso isto dá-me sorte!!

Até qualquer dia!

Minhas Queridas Senhoras Donas
Do meu coração.
A Dona Susette vai dar um passeio,
Fazer uma viagem,
Visitar outras paragens.
Tem pena de partir, mas tem de ser.
Volto qualquer dia, cheia de novidades, com certeza.
Quem sabe até se com outro nome.
Beijo-vos a todas, cheia de saudades, já.
Até qualquer dia.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

E ainda... só para terminar. Depois prometo que é só optimismo!



Portugal


Ó Portugal, se fosses só três sílabas,

linda vista para o mar,

Minho verde, Algarve de cal,

jerico rapando o espinhaço da terra,

surdo e miudinho,

moinho a braços com um vento

testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,

se fosses só o sal, o sol, o sul,

o ladino pardal,

o manso boi coloquial,

a rechinante sardinha,

a desancada varina,

o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,

a muda queixa amendoada

duns olhos pestanítidos,

se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,

o ferrugento cão asmático das praias,

o grilo engaiolado, a grila no lábio,

o calendário na parede, o emblema na lapela,

ó Portugal, se fosses só três sílabas

de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,

rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,

não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,

galo que cante a cores na minha prateleira,

alvura arrendada para o meu devaneio,

bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,

golpe até ao osso, fome sem entretém,

perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,

rocim engraxado,

feira cabisbaixa,

meu remorso,

meu remorso de todos nós...


A. O'Neill

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A Portugal

Esta é a ditosa pátria minha amada. Não. 
Nem é ditosa, porque o não merece. 
Nem minha amada, porque é só madrasta. 
Nem pátria minha, porque eu não mereço A pouca sorte de nascido nela.  
Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela, saudosamente nela, mas amigos são por serem meus amigos, e mais nada.  
Torpe dejecto de romano império; babugem de invasões; 
salsugem porca de esgoto atlântico; 
irrisória face de lama, de cobiça, e de vileza, de mesquinhez, de fatua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo ranger no nevoeiro a nau do Encoberto; 
terra de funcionários e de prostitutas, devotos todos do milagre, castos nas horas vagas de doença oculta; 
terra de heróis a peso de ouro e sangue, e santos com balcão de secos e molhados no fundo da virtude; 
terra triste à luz do sol calada, arrebicada, pulha, cheia de afáveis para os estrangeiros que deixam moedas e transportam pulgas, oh pulgas lusitanas, pela Europa; 
terra de monumentos em que o povo assina a merda o seu anonimato; 
terra-museu em que se vive ainda, com porcos pela rua, em casas celtiberas; 
terra de poetas tão sentimentais que o cheiro de um sovaco os põe em transe; 
terra de pedras esburgadas, secas como esses sentimentos de oito séculos de roubos e patrões, barões ou condes; 
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém: eu te pertenço. 
És cabra, és badalhoca, és mais que cachorra pelo cio, és peste e fome e guerra e dor de coração. 
Eu te pertenço mas seres minha, não.                                   
Jorge de Sena

País relativo

País Relativo,
País por conhecer, por escrever, por ler...
País purista a prosear bonito
A versejar tão chique e tão pudico,
Enquanto a língua portuguesa se vai rindo
Galhofeira, comigo.
....
país engravatado todo o ano
e a assoar-se na gravata por engano.
....
País amador do rapapé,
do meter butes e do parlapié,
que se espaneja, cobertas as miúdas,
e as desleixa quando já ventrudas.
O incrível país da minha tia,
Trémulo de bondade e de aletria
Moroso país da surda cólera
Do repente que se quer feliz
...
País do eufemismo, à morte dia a dia
Pergunta mesureiro: - Como vai a vida?
País dos gigantones que passeiam
A importância e o papelão,
Inaugurando esguichos no esgonço
Do gesto e do chavão.
E ainda há quem os ouça, quem os leia,
Lhes agradeça a fontanária ideia
...
Nhurro país que nunca se desdiz.
...
A Santa Paciência, país, a tua padroeira,
Já perde a paciência à nossa cabeceira
País pobrete e nada alegrete,
Baú fechado com um aloquete
Que entre dois sudários não contém senão
A triste maçã do coração
País das troncas e delongas ao telefone
Com mil cavilhas para cada nome
...
Embezerra país, que bem mereces,
Prepara, no mutismo, teus efes e teus erres.
...
Estrela trepa trepa pelo vento fagueiro
E ao país que te espreita, vê lá se o vês inteiro.
Hexágono de papel que o meu pai pôs no ar,
Já o passo a meu filho, cansado de o olhar...
No sumapau seboso da terceira,
Contigo viajei, ó país por lavar,
Aturei-te o arroto, o pivete, a coceira,
A conversa pancrácia e o jeito alvar
Senhor do meu nariz, franzi-te a sobrancelha;
Entornado de sono, resvalaste para mim.
Mas também já me ofereceste a cordial botelha,
Empinada que foi, tal e qual clarim!
A. O'Neill

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Epifanias de atoalhados

Para as minha amigas que andam a ter problemas com toalhas:
Caríssimas, eu própria já atirei a toalha ao chão, se bem me lembro, pelo menos umas 3 vezes.
Asseguro que correu sempre bem, e que há momentos em que se não o fizermos as decisões seguintes serão merda da grossa.
Depois uma das partes boas de nos livrarmos das toalhas é que nos vamos dando conta de imensas coisas importantes e significativas que existem nas nossas vidas.
O que proponho então é uma lista, que espero que as minhas amigas acrescentem ao longo do tempo em que andarem a pisar, pontapear, cuspir e maltratar a estúpida da toalha.
Aqui vai então a lista das minhas epifanias de atoalhados.
- às vezes esqueço-me de respirar
- muitas vezes ando pela rua mais depressa do que é preciso
- a minha gata tem expressões faciais
- a teoria das Super-Cordas tem inúmeras aplicações no quotidiano
- todos os dias as aranhas fazem teias muito fininhas no estendal
- a máquina de lavar roupa não gira sempre para o mesmo lado
- fumar 3 cigarros de seguida em frente ao espelho pode ser tão válido como ler Nietzsche e Sartre
- o queijo que apodrece no frigorífico não por falta de tempo para o tirar mas porque gramo bolor e gosto de ver as suas mutações
- e que na realidade não controlamos nada na vida

Aqui estão algumas das minhas epifanias. Alguém se anima a juntar algumas à festa??

Inveja

A amiga telefona-me para contar as novidades.

Está muito apaixonada e essa paixão é perfeitamente correspondida.

Dentro de mim inicia-se imediatamente um lamento de pseudo-análise comparativa, completamente idiota:

Tudo o que na história da minha amiga existe em abundância, entre mim e o homem, é escassez.

Se o par da minha amiga procura aberta e constantemente um pelo outro, eu e o homem fingimos casualidade e desprendimento no reencontro, como dois adolescentes parvos.

Se o outro par amoroso troca mensagens ternurentas a todas as horas, entre mim e o gajo, a comunicação à distância reduz-se a uma reles mensagem de dois em dois dias.

Se o sexo entre a minha amiga e o seu prometido é imediatamente íntimo e estonteante; entre mim e o coiso, ele é o espelho da assimetria afectiva e sentimental que grassa entre nós os dois.

Se o supremo casal do lado não consegue evitar tocar-se constantemente; entre mim e o... o.... trava-se a luta que já sabemos.

(Sempre que procuro o contacto físico não-sexual, o homem por quem estou apaixonada entrega-se a uma crise de espasmos, comichões, agitação, e desconforto psico-físico geral. Convulsão que me dá um enorme prazer apaziguar.)

Ou seja.

A inveja que sinto das minhas amigas, que tanto amo, é atroz.

Eu coloco-me sempre no fim da fila, como se nada do que me fosse devido me fosse dado. Pior. Como se a vida fosse sempre mais caridosa com os outros que comigo.

Sei que ambos os lados deste espelho, tão pobre, são uma ilusão.

Tanto a face de cá que me engana, soprando-me ao ouvido que não tenho nada – quando na verdade tenho quase tudo – como a outra face que sorrindo, sádica, me agride com imagens alheias de perfeição tão improváveis quanto as razões da minha decepção, e do meu ressentimento.

Se alguma inveja (dizem os livros) serve para nos tornar conscientes das nossas próprias limtações, talvez a mim sirva para me mostrar quão incapaz sou de avaliar e reconhecer as verdadeiras circunstâncias e factos da minha vida.

A minha inveja, dá-me a medida exacta da minha ingratidão, da minha cegueira, da minha infantilidade, e do meu egocentrismo.

Do meu medo.

Da incapacidade de reconhecer que um homem está apaixonado por mim e me deseja; e de fruir disso.

Da incapacidade de me regozijar com o que recebo todos os dias de tantos lados, de tanta gente que gosta de mim;

MAS, e é o que mais me assusta:

Da incapacidade de OUVIR e genuínamente RECEBER o que a amiga partilha tão feliz comigo ao telefone, preferindo entregar-me a esta parvoíce sem tamanho de só olhar para o meu próprio umbigo, e para a minha vidinha tão difícil, ai que merda, coitada de mim tenho mesmo um azar, é tudo prós outros, caralho.

A verdade, é que a minha amiga tem o que merece.

E eu também.

E não é nada pouco para nenhuma das duas.

Transbordamos de razões para nos abraçarmos e beijarmos e olharmos olhos nos olhos uma da outra e reconhecer que nos amamos, e que a vida nos tem amado muito também.

É mesmo como dizes, amiga: "Ás vezes só me apetece é abanar as pessoas!"

P.S: Eh, lá. Isto anda para aqui um cheirito de Mulher Católica... ou é só impressão minha? ai, que tu tens é de agradecer todos os dias o que a vida te dá, e o caraças... hum?

terça-feira, 26 de outubro de 2010

atirar a toalha ao chão 2


Queridas e amadas senhoras,


Notando-me ultimamente (e olhem que não é de hoje):

- ausente de mim;

- ansiosa por não-sei-o-quê;

- receosa e mais receosa ainda de me estar a tornar receosa;

- saudosa de mim;

- saudosa de vós e da vossa companhia;

- saudosa de um tempo livre e meu que, aliás, vendo bem, vendo bem, nunca tive;

- saudosa de ler, ouvir música, pintar, brincar e picotar;

- dolorida no meu corpinho todo da puta da tensão;

- cansada até mais não poder;

- chorosa e hipersensível;

- com azia;

- bipolar principalmente ao levantar e ao deitar;

- falsamente funcional enquanto desvario por dentro;

- sequiosa de descanso, cuidado, sono, pensamento, divagação, prazer, comunicação e perda de tempo (ou ganho consoante se veja a coisa);

- muito preocupada com questões existencialistas;

- pouco preocupada com produtividade

e sem tempo para cortar as unhas


... venho anunciar-vos em segunda mão que vou atirar a toalha ao chão.


E ai de quem ma apanhar!!! Vou folgar!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!


É já partir de Dezembro. Para já, por dois meses.

Depois, logo veremos.


Desejo uma outra arquitectura nos meus dias, mais rebeldia no meu caminho e uma cartografia política diferente dos meus passos no mundo


love you

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Vinis e Colossos

Durante muito tempo senti-me entre mundos diferentes sentia-me como se tivesse permanentemente de fazer a ponte entre duas realidades quase incomunicantes.
Acho que me senti assim desde muito pequena. No livro “As 7 maravilhas do mundo” do Circulo de Leitores era sempre a imagem do Colosso de Rodes que mais me impressionava, ficava horas a olhar para ela.
Senti sempre que tinha de fazer a ponte entre o mundo organizado, rotineiro, moralista, antigo e das conversas de chacha, das pessoas medíocres, das anedotas xenófobas, dos comentários pequeninos e o meu próprio mundo.
Durante muito tempo senti-me assim, e não o digo com orgulho pois durante muito tempo senti que estava dividida e ás vezes desestruturada, outras vezes não sabia de onde vinha aquela minha visão do mundo nem porque pensava ou sentia daquela forma.
Depois descobri alguns pares e aí comecei a sentir que fazia a ponte entre um mundo "mais normal" e outro mundo mais sensível mais profundo mais questionante. Também me trazia bastante angustia pois tentava permanentemente trazer a compreensão para ambos os lados.
Há pouco tempo uma amiga ao ver-me numa situação particular chamou-me a atenção com um comentário (como só ela tão assertivamente sabe fazer) e disse: "Epá estavas com um ar tão vendido, tão próprio”.
Fiquei lixada, depois surpreendida, depois revi-me totalmente naquelas palavras e fez-se um click, e pensei “realmente para que raio tenho de ser tão formal e impingir-me a mim própria estes papeis?”
Agora, olhando para trás, sinto que realmente me estou a cagar que finalmente sem me dar conta optei pelo lado B do vinil. Sinto que parei de virar o disco no prato e que as músicas que passam no lado B apesar de menos conhecidas e mais dissonantes são as que melhor sei trautear e que as posso trautear onde bem me apetecer sem que isso me desestruture.
Também me dei conta que já há algum tempo deixei de sentir a angustia de ter de fazer a ponte, de ter de permanentemente optar por um lado ou pelo outro.
Imagino que se eu fosse o Colosso de Rodes com certeza iria unir as duas pernas e cair de chapão no meio no mar e iria nadar muito muito até encontrar uma ilha, e nessa ilha toda a gente iria falar uma língua parecida com a minha ou pelo menos nos iriamos entender muito bem.
Acho que no fundo o que aconteceu foi que deixei de ter lado.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Desejo

O homem sentado à mesa da sua sala-de-jantar, fala. Terminou de comer e começa a descontrair-se.
O corpo pequeno inclina-se sobre a mesa, apoiado nos cotovelos. As mãos mexem-se elegantemente acariciando as costas uma da outra.
A camisa ligeiramente aberta, mostra um triângulo escuro de pêlos onde eu adoro esfregar o nariz e cheirar.
No fim das frases os olhos abrem-se e olham-me directos, quase sorridentes.
Sobre isto tudo uma voz baixa e muito ponderada avança, e penetra-me pacientemente através do estômago, dos olhos e da garganta.
Eu queria que fosse sobretudo esta voz a possuir-me. É ela que procuro de cada vez que me afundo no corpo do homem.
Os ombros discretamente volumosos encolhem-se de vez em quando por detrás do pescoço curto, em momentos perplexos da conversa. O homem é de uma arrumação espantosa.
As mangas da camisa dobram-se simetricamente até meio dos ante-braços.
No pulso esquerdo, um relógio de aço e couro verdadeiro.
O cabelo escuro amontoa-se ordenadamente sobre as fontes.
As unhas polidas são cortadas muito rente e condizem na mais perfeita exactidão com o vinco das calças e o rigor limpo dos gestos.
Todo o aparelho vocal produz uma dicção perfeita e ligeiramente pedante.
O seu entusiasmo nunca ultrapassa as fronteiras do corpo, cuja gravata, casaco, e botões de punho, se permite retirar no fim do dia.
O homem é um reflexo perfeito da casa, e a casa, do homem.
E eu, o contrário disto tudo.

domingo, 17 de outubro de 2010

É isto

A propósito do tempo que passa, da idade que se soma em números que nem sempre reconhecemos como nossos, a amiga desviou a conversa dos detalhes supérfluos e atirou a frase que me fez tanto sentido.
- Nada disso é importante. Importante é saber que a miúda que eu fui havia de gostar muito da mulher em que me tornei.

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O Abrigo de Senhoras tem o prazer de anunciar que acabou a época balnear.
Bem vindas, queridas amigas, ao tempo das mangas compridas e das noites longas.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Atirar a toalha ao chão

Se eu atirar a toalha ao chão o que é que acontece?
Se atirar a toalha ao chão só para ganhar tempo.
tempo para pensar,
tempo para sentir,
tempo para desacelarar,
tempo para perceber se as coisas podem ser feitas de outra maneira,
tempo para errar, para vagabundear, para me perder e voltar a me encontrar,
tempo para me surpreender e ser surpreendida,
tempo para arrumar e vasculhar o meu sótão,
tempo para ser mais tolerante, mais disponível, mais em contacto com a vida,
tempo para me reinventar e concretizar sonhos que ainda não ousei ter,
tempo para finalmente chorar a morte do meu pai,
tempo para dedicar às minhas filhas, à minha mãe,
tempo para ajudar o meu irmão,
tempo para poder deixar de ser ansiosa,
tempo para conversar, rir e dançar, sem medo do amanhã,
tempo para aguardar o amor,
tempo para viver o amor.
Será que, atirando a toalha ao chão, perderei assim tanto?
Quantos continuarão comigo? Quantos dos que dizem gostar de mim me incentivariam nesta "loucura do recomeço"?
E recomeçar onde, de que forma e em que lugar?

ainda a beleza

A propósito das palavras da Sra. D. Susette sobre o belo e o sexo, lembrei-me do meu Tio Álvaro. Dos muitos irmãos, o Tio Álvaro era o mais bonito, assim reza a lenda de família. Olho para as fotografias e percebo o que todos asseguram: no meio dos irmãos, a figura do meu tio paira sobre todas as outras e faz com que os restantes se dissolvam num nevoeiro de traços perfeitos mais ou menos iguais.
A história da beleza do meu Tio Álvaro é inseparável do incompreensível e estranho gosto que, aos olhos dos outros, este homem sempre teve por mulheres feias. Fazem-se listas dos seus amores, a manuela, parecia um homem, coitada, a teresa, não tinha ponta por onde se pegasse, a amélia, o que vias tu nela, álvaro?, a francisca, saiu-lhe a sorte grande, um camafeu como ela com um pêssego como tu.
O meu Tio ri-se e não diz nada. É a pessoa mais livre daquela família.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

O Belo e o Sexo

Conheço um homem que quando descreve uma mulher começa sempre por dizer se é bonita ou feia.
"No outro dia encontrei fulana de tal, uma giraça, com o cabelo assim e assado, bem-feita, etc, etc."
Toda e qualquer mulher que apareça na televisão, no restaurante, no trabalho.
Sempre me ofendeu e me chocou, esta visão meramente utilitária e tão estreita da beleza.
Para muitos homens, a beleza feminina está directamente ligada à ultilidade erótica e sexual.
Mulheres Belas, são Gajas Boas.
Mulheres Belas são Coisas Eróticas.
Um dia resolvi comententar, mais sonsa que uma freira, mais cínica que um grego: "tu valorizas muito a beleza nas mulheres, não é...?"
O homem ofendeu-se.
"valorizo como? Não. É só a coisa que está mais à vista, é só isso."
Prossigo: "Não, querido. É uma coisa que está mais à TUA vista. Dá a impressão que numa mulher, tu valorizas a beleza como se valoriza uma qualidade de carácter..."
"Eu...? Não é nada disso. estás completamente enganada.".
-"Diz-me lá... Eu posso apostar que todas as amigas que tens são bonitas, hum?"
O homem engasga-se. Consegui cortar o piu a um advogado.
-"Ah! Ah! Ah! EU SABIA!"
Está desorientado. Fica indeciso entre desmerecer a beleza das amigas para se defender, ou enaltecê-la gigantescamente para justificar o facto.
E é então que se sai com esta pérola:
"Tu não percebes, para mim é só uma coisa sexual, é uma questão de saber se comia a gaja ou não. E além, disso, eu até tenho amigas feias."

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

retrato fiel

tapo a boca, ato as mãos, assobio e disfarço
na ponta dos dedos a tentação do disparate, sinto-os a procurarem a folga entre os nós, a cavar a fuga num trabalho silencioso
o trabalho que dá salvar-me de mim mesma

domingo, 10 de outubro de 2010

Homo Autistus

Queridas amigas e apreciadas colegas de investigação, sra dona judite que por momentos temeu que por estes lados se tinha abandonado a causa cientifica, um grande bem haja a todas.

Venho dar um pequeno e modesto contributo ao estudo laborioso e valioso da sra dona Judite, sobre os diferentes grupos ou características dos homo que nos rodeiam.

Depois de vários dias de intensa observação e registo, julgo que consegui por fim identificar claramente o Homo Autistus, o que considero pode ser útil no sentido em que ao ser passível de identificação, evita que se caia em trabalhos ou esforços inecessarios quando interagirmos com sujeitos desta tipologia.

O Homo Autistus tem uma capacidade inesgotável para falar. E consegue falar sozinho durante muito tempo sem necessidade de qualquer esforço de função fática da linguagem por parte da pessoa (ou pessoas) com quem, supostamente, está a comunicar. Esta característica pode ser útil para quem interlocutar com ele, pois tem tempo para pensar nas suas coisas e retomar a conversa quando lhe apeteça.

O Homo Autistus gosta de ouvir-se, gosta de brilhar no social, de ser considerado inteligente e melhor que todos os demais homo, gosta de falar mais alto e mais grave para fazer-se ouvir. O homo autistus pode ser muito divertido ao principio mas depois de um tempo torna-se uma parede com um interruptor que se acciona pelo movimento ao seu redor. O Homo Autistus tem medo de ficar sozinho e fala, falazaza e chalaceia para que gostem dele, mas não consegue ligar as palavras ao coração, não consegue suportar o silêncio necessários para que essas palavras possam ter ainda mais sentido, e, surpresa das surpresas, o seu canal auditivo está directamente ligado ao seu umbigo. Apesar de que o Homo Autistus é mais frequentemente encontrado nos seres masculinos, também muitas das características que o definem podem ser observadas em feminas. O Homo Autistus pode ser um bom amigo, mas quase nunca um bom namorado.

Espero que a sra dona Judite aceite este meu modesto e empírico contributo e que lhe possa ser de alguma forma útil para o estudo e compreensão dos espécimes que nos rodeiam.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

as paredes da cidade sabem-na toda


A saída é ali, põe-te a andar. Leva contigo os dramas e os delírios. Aqui só há uma parede.
Adeus.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Minhas queridas senhoras,
Regressada de umas retemperadoras férias entre a montanha e o mar, o campo e cidade, o bucolismo dos passarinhos da côte d'azur (passarinhos rafinés, bien sur, bebem água evian nas esplanadas com capelines esvoaçantes na cabeça) e a vibração cosmopolita de nova iorque em fim de verão, chego aqui exausta mas com a alegria do prazer cumprido.
Nada sei das minhas companheiras de abrigo, tirando um ou outro recado aqui postado de tempos a tempos. Quer dizer, até sei. Sei que algumas de vós andam a braços com memórias familiares absolutamente harmoniosas e felizes, que uma senhora se dedica freneticamente a fotografar paredes, que outras tantas se esfumaram em textos distantes no nevoeiro do verão que passou.
E com tudo isto, fico preocupada. Vejo as minhas boas amigas desaparecerem entre paredes e famílias felizes, suspeito que abandonaram os valorosos projectos de investigação em curso, e fico para aqui em cuidados (desnecessários, talvez) que me aceleram o coração em taquicardias inúteis.
Peço-vos, por isso, que dêem notícias a esta vossa viajada (porém atenta) amiga.
É que não há coração que resista a tamanha espera.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

agora deu-me para isto

Agora deu-me para fotografar paredes.
Podia ser pior.
Foi na fonte da telha, um amontoado de barracas em cima do mar. Parei para fotografar a heidi e logo um homem me veio explicar que foi ele que construiu aquela barraquinha há mais de trinta anos, a casa era de uma velha que vivia com os netos, já morreu há cinco anos coitada, mas se a menina quiser mostro-lhe o meu jardim que está ali à frente, flores lindas, de todas as cores, fomos nós que construímos isto tudo há mais de trinta anos, a velha já morreu mas as minhas flores ainda ali estão.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Eu e a cidade

Este ano anda esquisito. Ou então sou eu que ando esquisita e passeio por sítios estranhos e tenho encontros bizarros. Ou então crescer é mesmo isto, sair do útero materno onde tudo e todos são bonitos bem intencionados felizes e equilibrados e dar de caras com um mundo cheio de pessoas que carregam às costas dores das quais não querem não conseguem não podem libertar-se.
Há dias reli A Sonata de Outono do Tolstoi e encontrei a frase que resume o que vejo ao meu lado: "Na cidade, uma pessoa pode viver cem anos e não reparar que já morreu há muito e apodreceu".
Às vezes apetece-me tocar-lhe no ombro e dizer-lhe isto baixinho. Mas depois percebo que já passou tempo demais para o poder trazer de volta à vida.
(custa-me tanto ser ateia e não acreditar nestes milagres)

segunda-feira, 20 de setembro de 2010


Vi isto numa parede do meu bairro e lembrei-me do presépio da sra d susette, da família da sra d yvette e de outras palavras por aqui penduradas que me puseram a pensar sobre o sítio onde aprendemos a ser, as pessoas que habitam os t-qualquercoisa das nossas infâncias e que nos vão acompanhando ao longo dos anos.
Aprendi a ser num sítio estranho. Lembro-me das discussões que me acordavam a meio da noite, eu a espreitar pela frincha da porta da sala com medo do que viria a seguir, as separações e reencontros dos meus pais, a minha irmã e eu no banco de trás do austin a caminho do cabeleireiro com a nossa mãe e afinal o carro parado, os planos mudados, a minha mãe a chorar e a fingir que não era nada. Aprendi a ser num sítio onde os fins de semana com o meu pai eram uma tortura, o frigorífico cheio de nada, a garrafa de aniz e umas bolachas recheadas, o quarto dele de onde saíam mulheres diferentes nas manhãs de domingo, a malinha que nos acompanhava com as camisas de noite e as escovas de dentes para dois dias inteiros em que o tempo se arrastava devagar. Aprendi a ser num sítio estranho, onde o amor não chegava para nada, onde o amor era um cavalo branco que só passa uma vez na vida e que se perde porque as histórias de amor só têm finais felizes nos livros.
O que vale é que sou uma rocha e nada disto perturbou o meu coração, cabeça e estômago.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Presépio

A minha tia, é uma santa.
Nunca ninguém está tão cansado quanto ela, nem ninguém guarda mais o sofrimento abnegadamente para si.
No entanto, não simpatiza muito com a segunda mulher do meu pai. De cada vez que se encontram para fins-de-semana, (todos os fins de semana) na casa de família, mostra-o "acidentalmente" através de um conjunto de atitudes veladas.
"A "X" não tem nada a ver com a tua mãe", explica-me. Mas eu lembro-me bem como ela tratava a minha mãe exactamente da mesma forma, nesses mesmíssimos fins-de-semana em família.
O meu pai finge que não vê. O meu pai é um santo.
Que teve uma ligação durante anos com esta mulher ainda casado com a minha mãe, e que passados dois anos sobre a sua morte a levou a viver para a mesma casa onde vivemos nós todos, durante trinta anos.
A maioria dos objectos que povoam a casa permanecem os mesmos.
Só não se casam por não quererem perder as pensões de viuvez.
A minha mãe era uma santa.
Que sabia desta ligação com o meu pai tendo ela própria um amante, que manteve até morrer. Existe uma forte possibilidade de eu ser filha deste senhor. Ninguém me disse nada, iam-me dizer para quê.
A segunda mulher do meu pai é uma excelente pessoa.
Precocemente viúva de um primeiro e muito breve casamento, esperou pacientemente pelo meu pai anos a fio, enquanto o secretariava no banco onde trabalhavam.
Agora para compensar, chateia-se violentamente com a mãe para o meu pai assistir, todos os dias.
É filha única e depois de enviuvar, regressou a casa dos pais, os dois também excelentes pessoas, onde viveu até aos 54 anos.
Da sua ingestão diária de alimentos fazem parte pelo menos 2 comprimidos "para a depressão".
Nos "fins-de-semana em família" faz questão de beijar e namoriscar com o meu pai à frente da minha tia.
A minha prima mais velha, é uma querida.
Que se casou com um homem fantástico mas que tem alguns problemas em "gerir as pulsões violentas que sente em relação ao mundo e às pessoas".
São ambos psicólogos.
A minha prima fala-me frequentemente das dificuldades que eu tenho em viver a minha própria vida, enquanto o seu marido a encorna de manhã à tarde e à noite com colegas de trabalho, e afins.
"Eu e o "X" berramos muito um com o outro mas depois acaba sempre tudo na tranquilidade.", explica. Acabar tudo na tranquilidade é, por exemplo, estarem a berrar uma hora sobre qual o melhor caminho para chegar ao Meco - são ambos ases da estrada - e no fim um deles desistir, furioso e derrotado.
A minha outra prima é encantadora.
Emigrou para muito longe mas vem cá pelo menos duas vezes por ano para se chatear com a mãe. Mas a minha tia - porque mãe é mãe - faz sempre questão de a ir levar ao Aeroporto.
Na despedida, entrega à pressa pequenas lembranças de cá à minha prima, para ela se poder deleitar durante a viagem.
Na última despedida, ofereceu-lhe várias coisas como por exemplo "tu és a pessoa mais egoísta do mundo, se eu hoje estou um caco e se o teu pai me deixou, foi por causa de ti. Eu não sei como é que és minha filha."
Já o marido da minha outra prima, dá-se bem com toda a gente.
Só lhe faz um bocadinho de confusão a mulher do meu pai. Como bom psicólogo que é, diz coisas do género "mas quem é que ela pensa que é, eu estou nesta família há muito mais tempo do que ela."
Recentemente, num desses fins-de-semana em que, lamentávelmente, eu não estive presente, tratou de explicar isso mesmo à mulher do meu pai, berrando-lho pacientemente durante três horas.
Com as crianças a assistirem.
Foi uma conversa equilibrada porque a mulher do meu pai também berrou de igual forma, para o meu pai ouvir.
O meu pai "por acaso" não estava presente porque estava a dormir no quarto ao lado sa sala, onde a "conversa" teve lugar.
Ora, toda a gente sabe quão pesado é o sono do meu pai.
Eu "por acaso" também não tenho estado presente nestes fins-de-semana de família.
Mas não deixo de me congratular com a enorme capacidade que a minha família tem em viver bem com cada um dos seus elementos e em expressar os sentimentos e as emoções de forma equilibrada.
Principalmente a generosidade emocional de todos, é o que mais me conforta.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

uma volta no bairro

e descubro isto.
tento perceber o sentido, mas escapa-me por entre a falta de cafeína e a confusão existencial que se agrava todas as manhãs.
se ao menos eu soubesse 'somente aquilo que sou'.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Há pessoas....

....que são assim na nossa vida. Vão e vêm, mas na realidade estão sempre lá.
Esta pessoa é a primeira pessoa de que me lembro, da minha idade, para além de mim.
Sempre fomos muito diferentes em muitas coisas, mas partilhamos um material qualquer que nos tem mantido unidas até hoje.
Ela gosta de 7up e eu de Coca-cola, ela come quilos de fruta e eu adoro croissants de chocolate, ela guarda tudo e não fala, eu rebento falo muito e depois arrependo-me, ela era mais namoradeira na adolescência agora sou mais eu.
Há muitos anos atrás eu fiquei chateada quando ela beijou o rapaz de quem eu gostava e ela deve ter ficado chateada quando percebeu que eu gostava do namorico dela, mas nem isso nos fez ficar muito muito chateadas uma com a outra.
Depois existem outras coisas, o funeral do gato recém-nascido, as férias da Páscoa na Beira-Alta, as brincadeiras aos detectives em que descobriamos droga no sótão, as fugidas de casa e as subidas ao telhado do meu prédio, a descoberta do mundo dos rapazes e que eles eram "giros hihihi!", as brincadeiras na rua e quando saímos vestidas com as roupas das nossas mães e tinhamos de fugir dos rapazes, as brincadeiras com as Barbies e a Cindys e de quando fingiamos adormecer em casa uma da outra para podermos dormir lá.
Depois afastámo-nos um pouco durante uns anos sem nunca desaparecer totalmente.
Há uns anos reencontrámo-nos e percebemos novamente temos muito em comum e que partilhamos mundos muito próximos. Há também a certeza de que tenho um quarto sempre à minha espera e a certeza de que basta um telefonema em pranto para eu largar tudo e ir a correr.
Tudo isto faz-me sentir que é assim, há pessoas que de alguma maneira nunca sairão das nossas vidas.
Sabes bem que isto é para ti minha querida tal como eu sei que mais dia menos dia virás aqui ler isto.
Um beijinhos cheio de uvas e tacinhas da tuperwere.