quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Dou uma última olhadela às pessoas no corredor lá fora, livres e vestidas. Sinto-me uma condenada. Dispo-me, não posso levar nada de meu lá para dentro, além das cuecas e das meias. Entregam-me uma bata que mais parece a gozar. O frio entra por todo o lado, numa falta de pano mentirosamente púdica.  Amarram-me a uma espécie de maca glacial com uma bola de borracha na mão. Põem-me uma máscara na boca. Deito-me na desconforável posição imposta. 

Avisam-me de que isto vai durar. Já sei como é. Já cá estive. A sensação de estar apartada de tudo é fortíssima. Uma espécie de aeroporto só para mim, uma cápsula-terra-de-ninguém individual. Tenho a sensação de que me vão deixar aqui e nunca mais voltam. Dizem-me que não. Mas, daqui, já não consigo ver ninguém. O som começa a penetrar-me na cabeça, marteladinhas que parecem desafiar  qualquer hipótese de ritmo. Depois, sobrevêm  agudos muito agudos. Alguns agudos doem dentro da cabeça, têm um efeito físico imediato. Os sons sucedem-se. Parece que o Pierre Schaeffer saltou diretamente de Paris, no final dos anos 40, para tomar de assalto todo o meu corpo. O som é incrível, invasivo, sem rumo e desnorteador. Às vezes, parece que me vai esfrangalhar os tímpanos. É anárquico e nunca mais acaba. Procuro padrões. Quando acho que encontrei algo, desaparece logo a seguir. Quando acho que acabou, estremeço porque recomeça.

Estou sob investigação e procuro sentir-me melhor, investigando eu também. O som é tão alto que adormeço, uma espécie de defesa animal, imagino. Não percebo se passaram dez minutos ou duas horas. Há poucas experiências no mundo urbano em que se esteja tão à mercê. Não se pode reagir a nada, nem ao frio, nem à dor, nem à comichão, nem à falta de ar. Se nos mexemos, é pior. Qualquer movimento a mais pode deitar tudo a perder. Fui avisada e estão a controlar tudo o que faço. Se me portar bem, libertam-me. Mas, se estiver inquieta ou me agitar demasiado, vou ficar mais tempo de castigo aqui metida. Houve alturas em que andava tão stressada que não conseguia aguentar isto. Dava-me pânico. Uma vez, quase fugi.  Não voltei lá durante anos. Aguentar estar aqui presa passou a ser uma espécie de bitola pessoal, para medir se ando benzinho ou passada de todo. Agora ando benzinho. Hoje até sinto que há qualquer coisa que me agrada neste anular da vontade. Não poder mexer-me, nem ir a lado nenhum, nem falar, de preferência nem sequer tossir.

Tal como me agradam tanto os aeroportos, aquela suspensão do tempo e do espaço no hiato da sala de embarque. Dantes viajava mais. Faz-me falta. Tudo o que ficava em terra e todos os que ficavam em terra já não podiam chegar a mim. Uma maravilhosa separação imposta, uma deliciosa mistura de excitação, saudades e uma plenísisma e concreta sensação de mim mesma que, em terra, se manifestava difusa e intermitente. Nunca me sentia tão eu como quando me ia embora.

Aqui também ninguém pode chegar a mim. Preciso de silêncio e paz. Aqui, de silêncio nada. Mas advém alguma paz de saber que, ao menos neste momento, não há outra coisa que eu pudesse ou devesse estar a fazer. Essa perspectiva pacifica-me. O meu habitual pensamento é um bicho insatisfeito que se extenua a andar à roda, numa constante divagação por cenários de vida hipotéticos paradoxais  e inconciliáveis. Nestes, a única constante é que ele (o meu pensamento) conclui sempre que eu deveria estar a fazer algo que não estou a fazer e a ser alguém que não sou. Por isso, a minha mente compraz-se agora com esta aterragem temporária, forçada e imobilizadora, aqui na cápsula. E entrego-me de bom grado, com alguma bonomia até, ao estranho massacre sonoro da jam deste carpinteiro bipolar, que meteram na minha cabeça, e a quem deram carta branca para improvisar. E vem-me à memória um livro infantil com ilustrações feitas de retalhos de tecidos. Na primeira página estava um carpinteiro com uma pança esférica metida numas jardineiras azuis de grandes botões e um bolso com um coto de lápis à espreita. Tinha um bigode roliço montado num sorriso patético e brandia um serrote no ar. Os seus sapatos castanhos pareciam os meus da Bambi e estavam cobertos de aparas de madeira clarinha muito enroladinhas umas nas outras, iguaizinhas aos caracóis que eu afastava para o lado para ver bem as páginas do livro. 

Chamam-me. É para sair. Portei-me bem. Quase tenho pena porque agora tenho de voltar à minha vida.

Incrível onde nos pode levar uma ressonância magnética.

Notas: A autora tenta escrever como escrevia antes do acordo ortográfico mas talvez o seu português já esteja algo abastardado, como todo o país, da capital a Semide, onde já há burros da glovo a entregar chanfanas para aquecer no micro ondas.

A autora não revê (muito) o texto. Perdoem-lhe as gralhas e assim.