terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Com alguns anos andados nesta vida, ainda consigo espantar-me com a rapidez com que abrimos as portas e janelas em salas cujas chaves se davam por perdidas e se tinham arquivado na pasta de memórias do passado.

E com a rapidez com que essas salas se iluminam e abrem os braços-portadas para nos acolher.

Ainda só chegaram a Valentina e a Susette.  As outras não sei quando chegarão. Combinámos encontrar-nos por aqui mas o dia e a hora são incertos e assim se quer: vogar sem obrigação. 

A sala ainda está cheia daquela poalha densa que é coada pelos raios de luz e cospe camadas de transparências diversas que obrigam a retina a abrir e fechar, num esforço de focagem e crença a um tempo.

Enquanto as outras não chegam, vou aqui preparar uma cevada e um medronho, que uma mão lava a outra, como se costuma dizer. E vou comer um resto de pão frito duro que ali tenho, ensopado com o resto do molho da caldeirada de ontem.

Acabei de voltar de Buarcos, junto à Figueira da Foz, onde passei 7 anos (ou foram 12?), incluindo os dois da pantomina.

Era manager de um espectáculo de variedades. Ficava mesmo ali a seguir à última saída do eixo Litoral-Interior, logo a seguir às farturas com neon amarelo. O show era numa tenda arrimada àquela barraca onde os noivos e os bêbados vêm disparar para dentro de ursos de peluche verdes e roxos que levam  depois trespassados para casa, com as veias de falso veludo vermelho a escorrer para fora do buraco que cosem na saleta, debruado em forma de coração com uma linha preta de seda. Mas o mal já está feito.

Fui, também (e isto é bem mais do que um detalhe), casada com um homem que era canalizador, construtor, progenitor,  quase meu pai e muito meu filho, pedreiro, desenhador, manuseador de máquinas de filmar e enxadas oxidadas e artista do nonsense. Tinha jeito para mudar o óleo do carro, e afã de carregar selhas da vindima da azeitona. Isto além de respigador de crâneos de raposa (diz que, afinal, era um cão), que nunca se sabe o que é que pode vir a dar-nos jeito, até ao lavar dos cestos é vindima e ficcionista de vidas gigantes que iam sair daquela mas nunca desaguaram, como a Ribeira de São Pedro de Moel, imortalizada pelo Zé Mário

Vivemos juntos anos e anos, sempre quase-quase a parir a solução daquilo tudo, numa puta de uma gravidez interminável. Noites e noites quase a parir a solução para o terreno, para a casa, para a vida, para o puto e, parecia mesmo, para o todo o futuro. 

Mas, bem vistas as coisas, estávamos à procura de soluções para todo o passado. É que esse cabrão, vejo-o agora quando me lembro da neblina que cobria sempre a praia, era quem dava as cartas do nosso presente e desenhava o futuro. Agora já o sei que construir o futuro a partir do passado nunca pode dar em nada sem ser tender esse mesmo passado para dentro do futuro, cobrindo-o com uma película fina estanque e expectável. Mas na altura não sabia a ponta de um corno de nada disto e assim andava ainda mais cega que hoje.

Tanta e tanta vez que lá foram os amigos e amigas (algumas delas destas que estão pra chegar) a caminho de Buarcos aos pares, em pequenos e grandes grupos, para a receber a anunciação do nosso futuro. Iam lá e ajudavam a dar um jeito à casa antes de eu ir para a maternidade parir a solução. Não posso jurar se dei à luz nem o quê. Estava sempre tanto nevoeiro que me fui ausentando de mim e lá pró fim acho que já nem lá estava. Se pari, não me lembro.

Para ver se nasceu algo disto tudo, nascer assim mesmo nascido e amiudar o seu aspecto e tamanho, precisava de mais visibilidade.  É que o nevoeiro que lá havia tapava a vista à gente, assim como a poalha que me cai nos cabelos nesta sala nova-velha. Quando fecho os olhos para ver cá dentro, vejo a praia sempre coberta pelo tal nevoeiro (parece que no paredão e na falésia, felizmente, já começa a descobrir).

Nascer, o que se chama nascer, não sei bem o que nasceu. Mas morrer, isso sim, morreu uma catrefada de gente. Da falta da morte não nos podemos queixar.

A vantagem dos mortos é que deixam tantas merdas para trás, que nos entretemos com elas. Ficamo-nos longos dias, que se aglutinam em anos, a debater se empandeiramos aquelas merdas todas ou se nos empalhamos antes nós para dentro delas. Com tanta coisa para destinar acaba por ser suportável lidar com aquela morte toda. Ficamos muito ocupadinhos com a cómoda, a TV com uma chave (sim, uma chave!!!), os vestidos feitos na modista Cinda, os fatos e fatos e vestidos pretos que enchouriçaram a avó numa longa viuvez irrepreensível, a coleção de anéis dos charutos do pai, a saber: centenas, senão milhares, de aneizinhos de papel dourado a dizer "Romeu e Julieta, Havana", "Montecristo, Havana", "Partagas", "H.Upmann", "El Rey del Mundo, Havana", guardados em centenas, senão milhares, de lindas caixas de charutos de madeira, a coleção de limpadores de charutos, pauzinhos brilhantes de uma espécie de veludo de todas as cores, mal empregados para limpar as orelhas, camisas de noite e meias a dizer "306". Ainda hoje uso meias com o número do quarto do lar da minha avó, ali na Rua São Filipe de Néri, umas freiras franciscanas, que de franciscanas só tinham o rimmel. Até o meu filho, que da bisavó mais não se lembra do que umas histórias que lhe contam com variações de acordo com o clima e pulsação de cada membro da família, vai para o polivalente da escola com o "306" pintado nas meias que-ainda-dão, apesar dos elásticos meio esgarçados.  As putas das canetas eram caras mas a tinta não sai, lá isso não.  Tal como não sai o nome "avó teresa" escrito por ela nos tupperwares. Assim mesmo, "teresa" com minúscula, com uma letrinha tão bonita, ensinada pela mestra prematuramente abandonada por ser mulher. Aquele "t" minúsculo ainda me dá vontade de chorar. Vá-se lá perceber que panos se torcem cá dentro que, bem apertadinhos, ainda trazem água e sal ao fim de tanto tempo. Se não pingam quando os torço numa direção, é rodar para o outro lado e já está. Felizmente, vou-me dedicando cada vez menos a torcer atoalhados fora de moda.

Assim, ocupadinhos com esta tralha toda, quando damos por nós, os mortos já morreram há muito ano e já se consegue viver sem eles. Não tão inocentemente como isso, pousa-nos nas mãos aquele bocado de culpa que nos dá aquela coisa de termos aprendido a viver sem eles. Parece que nunca se chorou tudo o que se lhes devia. Fica no coração um cheiro húmido, amor e cânfora, e uma rampa que nos precipita para uma solidão inexorável mas cada vez menos frequentemente, com o passar dos anos. Mas, às vezes, a falta deles ainda nos apanha pela calada, quase à canzana, com uma vivacidade que já se lhe não esperava, atribuindo-nos de volta a idade da infância, tenra e fatal. E também sobra a puta da caixa de bombons Quality Street com peças sortidas de emoção e história, clips de um feitio que já não se fabrica com um botão e um dente cariado de alguma criança antiga do tempo em que os sapatos não se moldavam aos pés. Há sempre umas merdas que não há, nem nunca há de haver, adonde pôr.

Já me alonguei muito, acabei com o medronho e com o pão frito e não toquei na cevada, que está fria e coberta de nevoeiro, também ali não há futuro que se leia. 

Ouço vozes que cantam alto.

Imagino são as palavras novas que vão escrever um futuro que não venha do passado. 

Um futuro liso e brilhante, de veludo dourado e verde, a espraiar-se em tons de azul cobalto e azul laranja, com todo o tipo de seres, plantas e flores, sexo, vida e prazer. Por estrear.



terça-feira, 13 de dezembro de 2022

 

Caminho.






domingo, 11 de dezembro de 2022

  No meu outro país podemos mudar de nome 1 vez a cada 10 anos.

Na realidade  o meu nome é Valentina, Valentina Bjørnsen .
O meu nome não tem nada de especial, somente quer dizer que algures nos meus antepassados existiu um Bjørn que teve um primogénito a quem deu o nome de Bjørnsen que quer dizer nada mais que filho de Bjørn.
A partir daí a todos os seus descendentes foi atribuído este apelido até à minha geração e por aqui há-de ficar pois não quero ser mãe e o meu pai não teve irmãos.
A título de curiosidade se tivesse sido uma primogénita seríamos todos Bjørndatter.
Quem escolheu o meu nome foi o meu avô, deles, dos meus avós paternos só herdei metade dos meus genes noruegueses e uma camisola cinzenta de lã tricotada pela minha avó com um botão de osso de baleia esculpido pelo meu avó.
Esta camisola pertencia ao meu avô e era a sua favorita para ir à pesca. Dava-lhe sorte e via sempre uma baleia. Na minha juventude ofereci esta camisola a um beto surfista da Praia Grande com quem eu achei que ia ficar comigo para toda a vida.
O meu avô queria me chamar Hjørdis, Hjørdis significa Deusa da Espada ou Deusa Guerreira.
O meu pai não quis pois iríamos viver em Portugal e já bastava aquele apelido que ninguém saberia pronunciar quanto mais ser Hjørdis Bjørnsen. Ficaram 6 meses sem se falar, o meu avô praticamente não viu a minha mãe grávida  mas no dia em que nasci ele chorou muito e chamou-me Valentina, Valentina significa valente, eu fui a sua primeira , e única, neta e assim fiquei Valentina porque na família do meu pai raramente nascem mulheres.
O meu avô sempre me chamou Val que em norueguês  (Hval) quer dizer baleia. O velho era teimoso.
Quanto à camisola arrependo-me de morte, pois apanhei o beto surfista a curtir com a minha “melhor amiga” e eu adorava aquela camisola.
Contei ao meu avô e ele esclareceu-me com a sua sabedoria nórdica que eu era mais bonita e inteligente  que o rapazola, e que não se dá o nosso coração a ninguém mesmo que se ame essa pessoa,
Fez-me pequenas esculturas até à sua morte.
Sinto falta da camisola, cheirava ao meu avô.