terça-feira, 25 de novembro de 2025

Para


              É preciso muito mais do que isso. Para escrever o que a visão produz no cérebro, é preciso transformar as palavras num olho complexo absolutamente imerso no tecido da realidade.
É preciso escavar e amontoar a matéria até criar um imenso fantasma-réplica da vida.
Como explicar o que vejo através do vidro sujo da janela, braços de folhas agitando-se pesados como rolos de carne vegetal.
Como o pequeno vaso de vidro com uma palmeira dentro. Verde de água e cal velha nas paredes.
Ainda não consigo aceitar inteiramente que estou em casa.
A ideia do caderno não é idêntica ao caderno. A ideia de desenhar no caderno não tem nada a ver com ir buscá-lo, abri-lo e escrever ou desenhar dentro dele.
Pensar em fazer qualquer coisa não é em nada semelhante a fazê-la e é nesta dissemelhança constante que a minha depressão crónica se estrutura.
Escrever é isso mesmo. A dissecação dessa dissemelhança.
Aquilo que somos nada tem a ver com a ideia que os outros fazem de nós.
E no entanto somos entidades que congregam palavra e fenómeno.

Sem comentários: