terça-feira, 2 de maio de 2023

 A Persistência da Memória.


Regressamos a Algés para dar início à concretização dos nossos planos. Tudo tarda. O luto desta casa é uma coisa que se interrompe e recomeça a cada visita.

Agora arrumo a casa que não se vê. Objectos inúteis acumulados dentro das gavetas, caixas, pastas, armários.

Já não me recordava da presença deste rio na minha janela, companheiro de tantos anos. Não me recordava de ser tanto desta cidade. 

Novo luto. 

Luto, sobre luto, sobre luto. Palavra parente de Luta.

Organizo as minhas coisas. Deito muitas memórias fora. Todo o objecto, por mais singelo ou estragado que seja, transporta  uma pequena memória. Vou, portanto, eutanizando pequenos pedaços de mim que já não vivem. São apenas espectros momentaneamente espasmódicos, porém mortos.

Acho que cheguei áquela idade em que começo a sentir que vivi muitas vidas, mas sem grande vínculo nostálgico ou romântico. De alguma forma, essas vidas que vivi instalam-se como pequenas dores na memória.

O meu cérebro tenta, sem sucesso, esquecer-se de tudo. 

Ultimamente tem-me visitado um título (mais do que a obra propriamente dita) de Dali. A persistência da Memória. Persistência que tento contrariar e que começou, em mim, na sua antítese.

Quando era mais jovem guardava relíquias de todos os acontecimentos da minha vida, guardanapos de papel de um jantar de grupo, ramos secos e tampas de plástico, laços de presentes e caixas de fósforos usadas, sabonetes de hotel. Ossos e penas e espinhas ou pequenas cascas de crustáceos.

Uma trança mumificada do cabelo que cortei em Barcelona.

Lágrimas vertidas em Barcelona...

Atrás de uma coisa vem sempre uma tristeza qualquer. Atrás duma mulher vem sempre outra e mais outra.

Tantas vezes já olhei através desta janela sozinha. 

No Pizão não há uma janela por onde olhar. É um espaço opressivo, fechado sobre si mesmo  como uma família. Serei algum dia capaz de fugir a essa tendência armadilhante da família, do espaço familiar.

Vim aqui para isso.

Mas que inquietação esta a de encerrar uma vida para trás e fazer nascer outra.

Deixarei alguma vez de interrogar o passado como se de uma jóia se tratasse. O passado sou apenas eu lá atrás, sem as mesmas respostas que não tenho hoje.

Que saudades deste rio e deste vento uivante entre os prédios.

que saudades dessa amargura ingénua que ainda não sabe que a vida vai, de facto, acabar.

Tenho pena de morrer, de não viver para sempre, de não ter tempo para me tornar no que realmente sou.

Não há tempo suficiente para perder todo o medo e ganhar a confiança necessária, disse um dia Clarice.

Já não aguento o amor que sinto por esta casa, por esta vida que vivi sómente de mim para mim.

Desta solidão no escuro com o rio ao fundo apenas restará uma vaga sensação de desaparecimento.