terça-feira, 2 de março de 2010

Dor fantasma

- Onde é que lhe dói? Pergunta o médico, apalpando-me muito sério a barriga.
- Aqui...? hum? aqui...?
Eu dentro do corpo á procura. Ao mesmo tempo quase mentirosa vou respondendo.
- n-não...não é bem aí...um bocadinho mais para baixo. Ás vezes quando respiro mais fundo.
O médico prossegue o exame, agora com espreitadelas semi-desconfiadas pelo rabo do olho.
- Vire-se, por favor. Levante a camisola.
(Mais vale é tirar a porra camisola, foda-se. merda. Merdamerdamerdamerda.)
"Ontem doía-me tanto" pedincho eu, esticando a cabeça sobre o ombro, olhos implorativos em busca de compreensão.
- Não fale. Respire. Outra vez. Mais uma vez.
(nunca respirei com tanta aplicação. Porto-me sempre tão bem, no médico.)
- Minha senhora. Não encontro nada.
- O quê? mas é que eu ontem... - respire mais uma vez, por favor.
(dou o meu melhor, cada respiração é uma vénia de solenidade e compenetração)
- Pode vestir-se.
Enfio a camisola. Está ao contrário mas agora tenho vergonha de a pôr bem. Lá fico sentada na borda da marquesa á espera, evidentemente, da estocada final.
Os médicos têm sempre uma estocada final. Nunca terminam uma consulta assim, sem um remate final.
- Minha senhora. (larga tudo, estetoescópio, óculos, luvas. Cruza os braços sobre o corpo, encosta-se ao tampo da secretária)
- Está tudo bem consigo. Não encontrei nada, está tudo bem.
Eu de rabo fincado na merda da marquesa, já estou a ver a coisa a vir, sinto as lágrimas a treparem a garganta em busca do vidro dos olhos para toda a gente ver, sinto o gelo das mãos a virar-se contra mim e a atacar-me de vergonha vandalizando-me a face.
- Minha senhora. Está tudo bem consigo. Esta dor não é sua.

1 comentário:

Sra D. Aurora disse...

Nem sei que lhe diga, sodona suzette. Gostei tanto que fiquei sem palavras.