sábado, 13 de fevereiro de 2010

A Chave

Na mesinha do escritório está um molho de chaves donde espreita uma etiqueta verde com a letra do meu pai: "Casa da X". (Há que manter a ilusão do anonimato nas coisas do Blog).
Muitas das chaves desse monte, já nem sei onde pertencem. Casa, cofre, portão, gaveta, armário, caixa. Há muitos sítios onde uma chave pode caber.
Para mim, deitar chaves fora é pecado. Chaves e livros, por mais inúteis, nunca consigo.
Assim, o monte na mesinha do escritório vai crescendo.
"Casa da X". O meu nome escrito pelo punho do meu pai.
Eu não sei muito bem quem é o meu pai.
Quer dizer, sempre vivi com ele, a minha família sempre dançou a música da família tradicional, (ou seja, cheia de segredos por baixo mas nunca se falando de nada por cima) mas o que sei do meu pai, acaba por se reduzir a meia-dúzia de clichés que se dizem sobre as pessoas de bem.
A mãe era uma espécie de Diário da República do Pai: O Pai criava as leis e a Mãe publicava-as.
As leis do Pai eram três: Dinheiro, Sim, e Não.
O amor do Pai existia mas era como dinheiro preso no banco, não se lhe podia mexer. De três em três meses chega o extracto pelo correio dando conta das carradas de contos de reis a crescer, mas dentro da carteira, nada.
Tenho pensado muito no meu Pai, por estes dias. Agora que a minha mãe morreu, o gajo já não se pode esconder.
Agora que a minha mãe morreu, quem manda sou eu.
O meu Pai tem uma cópia das chaves da minha casa, para o caso de ser preciso.
No caso de eu perder as minhas, o que é mau, porque eu tenho de saber tomar conta das minhas coisas. No caso de eu cair inconsciente em casa e ser preciso salvar-me. No caso de haver uma inundação ou um incêndio. No caso de um dia.
A única vez que o meu pai usou estas chaves foi para me regar as plantas nas férias. Metade morreu por excesso de água.
Cheguei a casa, e tinha duas plantas mortas. Ensopadas em água.
O meu pai era muito bonito, todas as amigas da minha mãe o diziam. E a minha mãe concordou.
A minha mãe era linda e o seu pai fotografou-a centenas de vezes em biquini quando tinha catorze anos. Quem tem essas fotografias sou eu.
Quando éramos jovens, a minha mãe pegava em mim e na minha irmã e enfiava-se connosco no centro comercial Amoreiras a torrar dinheiro em roupa.
Quando chegávamos a casa, faziamos passagens de modelos para o meu pai.
Durmo com muitos homens, por estes dias. Os homens são um mistério para mim. Estão ali á minha frente e dizem que sim mas depois é como se não estivessem.
Usam eufemismos patéticos para não dizerem"foder" quando "foder" é o que querem.
É fodido, ter um Pai misterioso.

2 comentários:

Sra. D. Celeste disse...

Sra. D Susset como gostaria de comentar a sua posta...
Mas não consigo, a única coisa que consegui foi escrever eu mesma uma posta sobre o meu pai.

Um grande beijo querida amiga.
Obrigada pelas nossas conversas debaixo do frio do Tejo e com cigarros acendidos uns atrás dos outros.

Sra D. Aurora disse...

Os pais são sempre um grande mistério.
Deve ser por isso que, muitos anos depois de sermos pequenas, andamos ainda a juntar as peças, a olhá-las de frente e de pernas para o ar, a procurar sentido em corpos tão perdidos como nós.
O que nos vale são as conversas debaixo do rio tejo. E também nos vale encontrarmos, juntas ou sozinhas, maneiras de piscar o olho à desgraça.