terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Dentro


Uma aranha percorre a superfície interna do meu corpo. A pele retesa-se produzindo pensamentos aracnídeos. O cérebro arrota imprecações inúteis.
Estou reduzida a este animal esquelético e invisível, tela cómoda de narrações dramáticas, inúteis.
Espinha quebrada, silêncio, luz.
Nunca pensei um dia ansiar tanto pelas visitas da família. Velhos conhecidos parecem-me cada vez mais velhos e menos conhecidos.
Como peças de roupa que usei em tempos  numa festa e me parecem hoje tão descabidas e absurdas.
Serão os factos da minha vida não mais do que um conjunto de coisas fora de moda. Uma sucessão de ideias que vão perdendo a força de estação em estação.
Às vezes fico assim no sofá a pensar nisto. Como uma velha sentada no cadeirão do lar à janela, olhando o vazio. As horas e os dias e os meses e os anos e as décadas passam como séculos num dia.
Eterno presente em cujo cadeirão me afundo sulcando esta forma incurável de estar viva e de morrer e de estar viva.

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Para


              É preciso muito mais do que isso. Para escrever o que a visão produz no cérebro, é preciso transformar as palavras num olho complexo absolutamente imerso no tecido da realidade.
É preciso escavar e amontoar a matéria até criar um imenso fantasma-réplica da vida.
Como explicar o que vejo através do vidro sujo da janela, braços de folhas agitando-se pesados como rolos de carne vegetal.
Como o pequeno vaso de vidro com uma palmeira dentro. Verde de água e cal velha nas paredes.
Ainda não consigo aceitar inteiramente que estou em casa.
A ideia do caderno não é idêntica ao caderno. A ideia de desenhar no caderno não tem nada a ver com ir buscá-lo, abri-lo e escrever ou desenhar dentro dele.
Pensar em fazer qualquer coisa não é em nada semelhante a fazê-la e é nesta dissemelhança constante que a minha depressão crónica se estrutura.
Escrever é isso mesmo. A dissecação dessa dissemelhança.
Aquilo que somos nada tem a ver com a ideia que os outros fazem de nós.
E no entanto somos entidades que congregam palavra e fenómeno.

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Um quadrado

 
de veias e folhas pendentes avisa-me do outono branco cinza.
O meu rabo afunda-se no colchão e os óculos fazem-me doer os olhos. Pequenas ondas de calor inundam face, pescoço peito, virilhas. A roupa enrodilhada nas pernas forma um ninho de sono em volta.
Pela janela chega-me uma brisa de estrume morno que dia após dia vai implacávelamente destruindo esta minha ideia romântica de "campo".

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Que Chatice


Só a ideia de escrever sobre isso me põe doente.
Mesmo antes de tocar na coisa própriamente dita, mesmo antes de chegar a vislumbrá-la, encolho-me de nojo.

Mas não evito a inveja e o instinto homicida.

Sentimentos de repulsa rasgam-me e através destas feridas alguém aproveita para entrar. 

Acabou-se a luz do espírito. 

A mulher alimenta-se das crias agarrada à fantasia de lhes poder sobreviver.
Elas aproveitam as poucas gotas do seu leite para as últimas lições.
Agarrada ao irmão, escava túneis pela calada conseguindo obter todos os favores. 

A vida inteira lhe soube esfregar humildemente o ego como lâmpada de Aladino

Realizados todos os desejos,

Confunde o génio da lâmpada com Salomão.

Mas Salomão, que estende o olhar para além de todas as pessoas, tomará uma decisão que a ninguém satisfará inteiramente.
Porque a verdadeira justiça nunca recompensou ninguém. Reconduz  coisas e pessoas aos seus devidos lugares e muito pouca gente nesta vida está satisfeita com o lugar que lhe calhou.

Eu própria, também já tomada pela doença da família, me perco em solipsismos doentios que em nada me ajudam, agravando apenas uma horrível sensação de abandono.

Fadada a esta condição de filha adolescente, eternamente corroída pela inveja e pelo ciúme. 
Não sou eu também capaz de estar à altura.

E pergunto-me se serei algum dia mais qualquer coisa para além duma pobre adolescente em fuga.

Terei de matar toda a gente para ser capaz de existir por fim em liberdade?

A maçã nunca cai longe da árvore.

E esta trampa toda, para entretenimento dos doentes, parece não ter fim à vista.

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Quadradinhos

Ultimamente ando com a sensação de que as coisas passam e já não voltam.

Uma tristeza infiltra-se nas conversas desmazeladamente disfarçada de irritação 
Deflagrando fatalmente em discussões absurdas, quezilentas, que se pegam à pele com um inescapável cheiro a merda.

Limpas o rabo com um quadradinho de papel absurdo 

Que se rompe 

E acabas com merda na ponta dos dedos.

De cada vez que voltas cheirá-los, lá está. Por mais que esfregues

A consciência cheira-te sempre a merda.

sábado, 1 de novembro de 2025

Monstro,
Tu nem te passa pela cabeça os desertos que eu já atravessei.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Outono

Descascam-se nozes, apanham-se maçãs.


domingo, 26 de outubro de 2025

terça-feira, 21 de outubro de 2025

As Roupas ou Porque é que só através da moda é que uma mulher se realiza.



E então penso nas roupas e sinto que é apenas através delas que consigo ser a custo uma coisa imponderável.

Aí suspensa

Sou, através de uma estranha combinação mágica de cores e de tecidos e de calças e de botas e de camisolas e casacos aparição dum  ser imaginado

Mulher dos meus sonhos
Criada e recriada obsessivamente num espelho interior, escondido,  inalcançável espelho da infância 
Assombrando-me pulsões absurdas e fetiches 

Nessa busca incessante através dum olho que não consegue ver 
Olhar impossível sobre si mesmo

Nunca chego a reconhecer-me inteiramente ao espelho.

E tento sempre uma nova combinação de coisas, sobrepondo um corpo recriado sobre o meu cadáver.

Ocasionalmente corto o cabelo sempre ao espelho. Há anos que ninguém lhe toca desta forma a não ser eu. O cabelo é sagrado. De cada vez que fui ao cabeleireiro senti sempre que pequei 

E transgredi na religião da minha imagem.

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Copo D'Água - Tempestade

 
Falta de paciência para festas. 

Estou hoje reduzida a uma mulher em estado-de-sítio. Tufão de ideias espalhadas à pressa sobre a superfície ténue da identidade.

Rodeada de estranhos bem dispostos e um pouco hipócritas. Pessoas que não conheço.

Apesar disso nunca me falta conversa circunstancial entre folhos e gesticulações exageradas.

Mas a luz mais bela brilhou sobre o horizonte do mar devorado pela penumbra, 
E de seguida um imenso jogo de luzes artificiais para afugentar o medo coletivo do silêncio

Balançando como um pequeno barco ao longe esquecido no escuro da tempestade.

Nuvens de perfume e suor misturam-se entre-portas - Lá fora o chão é varrido impiedosamente pelo vento litoral

Crianças transpiradas gritam e correm e comem e escorregam e choram e comem novamente 
As paredes forradas a cortiça absorvem as vozes das pessoas.

E os homens comem e comem e bebem e empanturram-se e engasgam-se e engolem e limpam as beiças a guardanapos de papel minúsculos.

Casamento caro e sobrevivente.

Finalmente  serão as crianças a partir tudo exalando um odor ténue a comida e fezes, e rebentarão todos os balões da sala
E arrancarão sôfregas os cortinados e toalhas e farão uma fogueira com os nossos corpos e cuspirão e cantarão e correrão saltando e gritando e despindo e pintando, olhando com espanto alienado o resultado monstruoso das suas ações.

domingo, 28 de setembro de 2025

A Palmeira


Há uns anos fui passear ao jardim Botânico tropical de Belém.
Olho para esse Verão e o meu olhar enche-se de uma luz amarela quente, mistificada pela nostalgia de qualquer coisa muito anterior ao Verão, já que, esse, foi passado à espera do que nunca chegou.
Deitada, dia após dia, sobre a areia, observando a pele tingir-se lentamente.
No canto da praia, abraçada pelo anfiteatro das rochas olhando o mar,
chorei ao sol de uma forma que jamais julguei ser possível, entre as pessoas.
Vivi nesse jardim de plástico velho e beatas secas enterradas na areia, esperando.
Dormitando, chorando, bebendo cafés.
Mas no meio do jardim uma palmeira radiosa, cujas ramagens pesadamente floridas flutuavam na corrente invisível do ar marítimo de Belém.
Como quis ser essa palmeira tão intensamente harmoniosa, resplandecente.
Hoje, sinto-me mais próxima  daquele jardim, rodeada de espécies ligeiramente exóticas e silenciosas, retirada da agitação bacoca do asfalto e das novelas tontas dos humanos.