segunda-feira, 5 de julho de 2010

ainda os ananases

Minha querida Sra. D. Susette,
Eu, pelo contrário, sempre ouvi o meu avô citar o Eça de Queiroz quando chegava o Verão:

"Entrei no quarto atordoado, com bagas de suor na face. E debalde rebuscava desesperadamente uma outra frase sobre o calor, bem trabalhada, toda cintilante e nova! Nada! Só me acudiam sordidezes paralelas, em calão teimoso: - «é de rachar»! «está de ananases»! «derrete os untos»!... " (na Correspondência de Fradique Mendes).

O meu avô passava as tardes sentado na sala, a ouvir música muito alto e a ler, comia caramelos que escondia num armário, aquecia conhaque em frente ao radiador, jogava xadrez com os netos, ensinava-nos palavras complicadas que não entendíamos, lançava papagaios na praia e filmava em super 8.

O meu avô sabia páginas e páginas do Eça de cor. O calor de ananases era uma. Ou as trombas de dar melancolia aos móveis.
Ou tantas outras de que me vou lembrando uma e outra vez, sempre que o meu avô João aparece junto a mim.

1 comentário:

estreladumar disse...

o meu avô chamava-se Eugénio e consta que até aos 50 anos levou uma vida de galifão, até se ter convertido ao Credo divino da igreja adventista do 7º dia. a partir desse momento, dedicou a maior parte do seu tempo a sublinhar bíblias, que oferecia aos seus netos, não interessa onde estivessem. não sei como, uma dessas bíblias veio parar às minhas mãos, o remetente não a reclamou e no meio das escrituras sagradas encontrei um marcador em cirílico, prova de que o livro cruzou muitos mares e continentes até chegar às minhas mãos.

o meu avô... veio muito cedo do Porto para Lisboa, de barco, com a sua mãe e mais não sei quantos irmãos. tocava guitarra clássica e sanfona, falava muitas línguas e passava a vida a trocar de casa, a construir casas, a vender casas... uma alma itinerante. amava a pantera cor-de-rosa e a cidade de Sevilha. mas, sobretudo, amava a minha avó matilde.

quando nos ia visitar, levava chupa-chupas e colocava-os invariavelmente no nicho mais alto, com quatro miúdas aos pulos à sua volta, a tentar sacar-lhe as guloseimas.

o meu avô tinha uma vespa e ensinou a minha mãe - a sua única filha - a andar nela e também de bicicleta e a nadar nos mares revoltos da praia grande. o meu avô usava chapéus, mas lembro-me de uma boina basca que lhe assentava muito bem.

no dia em que morreu, dormi ao lado da minha mãe e tentei consolá-la, assistindo, pela primeira vez na vida, ao desgosto sem nome de alguém que perde um pai.

foi o único avô que tive. o meu outro avô - João - não cheguei a conhecer.